quarta-feira, 22 de outubro de 2008

O uso da fotografia como discurso: o caso das festas populares religiosas na Ilha dos Marinheiros.

Carlos Leonardo Recuero, Lyl Rejane Recuero, Rebeca Recuero, José Antonio Recuero e Maira Recuero

As culturas populares expressam seus saberes através de manifestações repletas de significações e expressões muitas vezes indizíveis por palavras ou textos tradicionais. A memória e a tradição oral dos povos latino americanos, independente de suas vertentes étnicas e culturais possui uma vertente única. A origem de ameríndios e basicamente de portugueses e espanhóis, forjou uma religiosidade latina americana, fundamentada no cristianismo.
Entretanto, a diversidade que existe contraria aos ensinamentos cristãos que prevê à unidade aos seguidores de Cristo, gerou uma beleza única à cada evento popular religioso que ocorre na America Latina.
Este trabalho apresenta, mais do que uma narração tradicional um discurso visual, onde a fotografia é utilizada como o principal caderno de campo no estudo das manifestações religiosas e populares na Ilha dos Marinheiros.
A Ilha dos Marinheiros é a maior ilha da Laguna dos Patos. A Laguna dos Patos, erroneamente considerada como lagoa, fica localizada no estado brasileiro do Rio Grande do Sul. Com uma área de 39.280.854,60 m2 e tendo desta área 12.583.711,00m2 de lagoas, areais e dunas a Ilha dos Marinheiros está localizado no noroeste geográfico a 32O. De latitude sul e 52O.6`de longitude oeste e possui uma configuração que pode ser denominada de circular.
O nome originou-se pelas constantes idas à ilha por parte dos marinheiros da armada de Silva Paes, em busca de madeira e água potável para o abastecimento do forte, que em 1737 foi fundado a uma distância de 1,5 km através co canal da Lagoa dos Patos e que originou a cidade do Rio Grande.
A Ilha dos Marinheiros esta dividida em quatro regiões, denominadas por seus habitantes como Bandeirinhas, Porto do Rey, Marambaia e Fundos da Ilha. Tem hoje uma população estável de cerca de 1.500 pessoas, sendo a maioria composta por velhos e crianças. Os adultos e os jovens com maior capacidade de produção migram para o continente em busca de melhores oportunidades e em algumas vezes como uma forma de fuga da dura vida que os pescadores – lavradores da ilha levam.
A identidade do ilhéu é formada com base nos mecanismos de apropriação dos recursos do mar e na exploração de uma agricultura familiar rudimentar. As construções identitárias e sociais se elaboram a partir das dimensões imaginárias das representações culturais que foram forjadas no grupo por uma herança mítica e religiosa própria de habitantes insulares.
A íntima ligação do ilhéu com a natureza e os fenômenos naturais, próprio de culturas que fundamentam sua sociedade na retirada e captura de recursos naturais, forjou a fisionomia antropogeográfica do homem da ilha. Nesta formação muito contribuiu a herança religiosa portuguesa. O isolamento natural que determina as culturas insulares, o primitivismo social e sobretudo as relações que estabelece com o mundo do desconhecido, submetido às forças da natureza, dos ventos e das mares, é o que caracterizam no dizer de Marques o pescador-lavrador:
“(...) Temente a Deus e aos seus santos padroeiros”, “(...) mas deixou-o ainda supersticioso. Receia o sobrenatural; crê em mitos; usa “bentos”, talismãs. Utiliza-se de ‘rezas’ especiais para afastamento dos ‘mau spirito’ e do ‘mau olhadu’. Teme os ‘mau agoro’ e uma serie de coisas ‘qui não presta dizê ou fazê’; protege sua casa com ‘registo de santo’. (MARQUES, 1973:16)
A cultura insular ilhéu caracteriza-se por ter uma relação com o sagrado, com mitos e lendas que compõem o imaginário coletivo desta população. O mundo invisível dos espíritos só é passível de compreensão, através do diálogo entre a cultura, a memória e a devoção presente nos gestos, olhares e formas de comportamento presentes nas manifestações religiosas organizadas em homenagem aos santos padroeiros. É o agir e o fazer realizado como linguagem comportamental que irão estabelecer as relações com o mundo dos espíritos, rompidas pelo cotidiano da vida.
A manifestação religiosa de pessoas simples em busca da salvação divina e pelo paraíso, realizadas nas festas religiosas em pró do santo padroeiro, são uma contraposição ao agir realizado durante o tempo profano cotidiano exercido na existência terrena e exigem “negócios com o divino”, como o pedir, prometer e pagar.
Portanto, todas as maneiras de manifestação religiosa, como a retribuição das dádivas recebidas na troca ainda que mística de favores divinos, das promessas realizadas, de trocas de pedidos e orações e oferendas fazem da festa um acontecimento sagrado e “(...) santificado pelos deuses e suscetível de tornar-se presente pela festa”(ELIADE, 2001.:65) e exige do ilhéu devoto participar para agradar os deuses pois a troca entre o divino e o homem deve ser efetivada para estabelecer condutas sociais e comportamentos que deverão reger o grupo social até a próxima festa.
Por outro lado, existe como diz Mauss uma obrigação de dar e de receber, pois “(...) não implica só a obrigação de retribuir os presentes recebidos; ela supõe dois outros igualmente importante: a obrigação de os dar, por um lado, e a obrigação de os receber, por outro”(MAUSS.2001.67).
Assim, se percebe que a festa é repleta, não só de uma atmosfera religiosa de fé e devoção, mas é repleta de acontecimentos que visam reparar as pequenas e grandes transgressões realizadas para se obter uma re-inserção no mundo profano, de uma nova maneira e com um novo status como diz Van Gennep(1978).
Este acontecimento sócio – cultural é repleto de signos e significados. É neste momento religioso-social que o homem simples, submetido a natureza do tempo cíclico da vida e, distante da submissão sufocante da cidade grande e do modernismo globalizante, re- estabelece a ordem do grupo social.
As festa religiosas são ritos de passagem que servem também para aumentarem a coesão do grupo social, estreitarem laços familiares e reavivarem as relações de parentesco. Este processo, na Ilha dos Marinheiros, é ainda uma forma de definição de identidade étnica que define o grupo nativo e os outros.
A invenção da fotografia “(...) abriu à antropologia novas possibilidades de trabalho, como objetivar aspectos da realidade que antes não passavam de meras impressões (GURAN, in ACHUTTI, 1998: 88), uma vez que a natureza vai se substituindo a cada momento, mudando o anteriormente visto.
A expressão de Lévi-Strauss “mirar, escuchar, leer”(LEVI-STRAUSS, 1992:xx) deve ser entendida não só como uma análise de seu trabalho, “(...) mas como uma indicação de que o uso dos sentidos da visão e da audição devem ser preparados pelo antropólogo, para a sua utilização, não só pela percepção do real, que é amplamente visual e auditivo, mas como outra fonte de novas observações seguras sobre a cultura, tomadas com a utilização da ‘reprodutibilidade técnica do real’, e realizadas pelo aparato fotográfico”(RECUERO.2008.36) .
Assim a utilização da fotografia como ‘método de observação’ sugerida por Mauss em seu “Manual de Etnografia” (2006), a observação participante de Malinowski aventada no livro “Os Argonautas do Pacífico Ocidental” (1968) como forma de efetuar uma pesquisa de campo antropológica e etnográfica, são completados como método desta trabalho com as orientações de Collier Jr., e “A Utilização da Fotografia Como Método de Pesquisa”(1973), são os elementos chaves na elaboração deste trabalho com o uso da Fotografia como discurso: o caso das festa populares religiosas na Ilha dos Marinheiros.
A escolha da fotografia como fio condutor se fundamenta na bibliografia existente sobre antropologia visual, pois como diz Samain ao falar sobre o livro de Bateson e Mead “Balinese Character Photografic Analysis”, como fonte de pesquisa em ciências sociais “(...) concebidos como verdadeiras fontes de pesquisa e não apenas como meras ilustrações”(SAMAIN in ALVES, 2004: 53).
Finalmente sobre o uso da fotografia como método usa-se a premissa de que “(...) a fotografia implica, de nossa parte, um conhecimento e uma aceitação do mundo tal como a câmara o registra”(SONTAG, 1981:22).
Para a investigação sobre as festas religiosas na Ilha dos Marinheiros, se participou de todas as festas religiosas que ocorreram nos últimos três anos. Foram realizadas cerca de 9000 fotografias digitais e 2000 fotografias analógicas em preto e branco e a cores. As festas foram fotografadas desde a sua preparação, organização e a festa propriamente dita, com todos os ritos existentes.
Ao se dar a mesma importância da imagem fotográfica ao texto tradicional, não se abriu mão do tradicional caderno de campo e de entrevistas orais, alem da observação imerso na comunidade. Assim, durante os tres anos foi possível reunir uma infinidade de informações, sobre a tradição popular dos festejos, sobre a escolha dos santos padroeiros, sobre os ritos religiosos e sobre as manifestações individuais dos ilhéus.
Se o que a fotografia apresenta é provas da realidade, a ordenação das imagens fotográficas obtidas de forma a comporem um texto visual sobre as manifestações sociais como forma de recriarem as relações interrompidas com os santos padroeiros e conseqüentemente com o mundo dos espíritos.
As imagens apresentam o rito, a magia, a piedade e a fé destas relações com o sobrenatural, mostrando como o ilhéu através da linguagem do corpo e de suas variantes, estreita as relações com os espíritos do céu e os espíritos da terra e da água renovando com as divindades contratos que regem o modo de viver social e culturalmente naquela sociedade ilhéu.
Percebe-se ao final do trabalho que os Ilhéus fundamentam sua vida e suas relações sociais nos preceitos do cristianismo trazido pelos colonizadores, com forte características latinas e hispano-portuguesas. Que as exteriorizações dos aprendizados feitos através da visualização das práticas devocionais nos acontecimentos religiosos e festas, determinam na memória do grupo social nativo, as maneiras de agirem com vista as suas relações com o mundo sobrenatural
Que o uso da fotografia como método discursivo, neste caso, mostrou-se eficiente, pois a duplicação da realidade efetuada pelas imagens fotográficas foram mais persuasivas que a observação presencial, talvez devido a existência do movimento, que é perturbador para o ser humano.
A mediatização da fotografia com o uso do processo fotoetnográfico no estudo cientifico social é uma dessas novas tecnologias hipertextuais que o trabalho de campo deve incorporar, como forma de gerar uma compreensão maior e melhor dos seus objetos de estudo, reforçando o diálogo pendente entre a academia e o saber popular.
Bibliografia
ACHUTTI, Luiz Eduardo Robinson. (Org) Ensaios Sobre o Fotográfico. Unidade Editorial.Porto Alegre. 1998.
ALVES, André. Os Argonautas do Mangue. Editora Unicamp.Campinas. 2004.
COLLIER JR. John. Antropologia Visual: A Fotografia como Método de Pesquisa. Editora da Universidade de São Paulo. São Paulo 1973.
ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano. A Essência das Religiões. Editora Martins Fontes. São Paulo.2001.
MALINOWSKI, Bronislaw. Argonautas do Pacífico Ocidental. Um Relato do empreendimento e da Aventura dos Nativos nos Arquipelágos da Nova Guiné Ocidental. Coleção os Pensadores. Editora Abril.São Paulo. 1978.
MARQUES, Lilian Argentina B. O Pescador Artesanal do Sul. Mec. Funarte. Rio de Janeiro. 1980.
MAUSS, Marcel. Ensaio Sobre a Dádiva. Edições Lisboa. 2001.
RECUERO, Carlos Leonardo. Dissertação de Mestrado. A Ilha dos Marinheiros: um estudo fotoetnotextográfico do ilhéu, seus mitos e a sua religiosidade. UFPel. 2008.
SONTAG, Susan. Ensaios Sobre a Fotografia. Editora Arbor. Rio de Janeiro. 1981.
VAN GENNEP, Arnold. Os Ritos de Passagem. Editora Vozes. Petropolis. 1978